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Inconstitucionalidade da exigência de confissão para proposta de ANPP

Aos 13 de julho do ano corrente emitimos, em conjunto com o douto Corregedor-Geral do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, recomendação aos promotores e promotoras de justiça, com a qual fixamos a tese, em caráter orientativo, portanto, não vinculativo, que dispensem o requisito legal da confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal, disposto no artigo 28-A, do Código de Processo Penal quando da análise sobre o oferecimento da proposta de acordo de não persecução penal (ANPP).

Segundo dispõe o artigo 28-A, do Código de Processo Penal, não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstanciadamente a prática da infração penal, praticada sem violência ou grave ameaça e com a pena mínima inferir a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, mediantes as condições cumulativas previstas em lei.

A recomendação emitida está amparara em estudo técnico dos órgãos de apoio do Ministério Público do Estado de Mato Grosso (Centro de Apoio Operacional Criminal e Centro de Apoio Operacional da Execução Penal), do qual extraímos fundamentos jurídicos pela conclusão da inconstitucionalidade da exigência de confissão como condição para a proposta do referido acordo.

Como já vem manifestando o próprio Superior Tribunal de Justiça (HC nº 657165-RJ), não obsta o oferecimento do acordo de não persecução penal a ausência de confissão durante o inquérito policial, o que por si só não inibe que o membro do Ministério Público ofereça a proposta em audiência extrajudicial, com a indispensável presença do indiciado, de seu advogado ou do defensor público.

Dentre os fundamentos que abalizam a posição do Superior Tribunal de Justiça está relacionado aquele que indica um tratamento desigual àqueles que, desde a fase do inquérito policial já estão sendo acompanhados por advogado ou defensor público, aos quais poderiam ser dispensadas as informações necessárias e suficientes para a futura celebração do acordo de não persecução, em detrimento da grande massa de pessoas indiciadas e interrogadas sem a presença de sua defesa, com evidente prejuízo de acesso ao instrumento de política criminal do ANPP.

Não só isso, doutrinariamente já se defende que a exigência da confissão avilta o direito fundamental à não autoincriminação previsto no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, pois o indivíduo, tencionando acessar o acordo penal, vê-se compelido a confessar o crime em fase pré-processual. De se destacar que inclusive já existe precedente jurisprudencial assinalando que o valor jurídico da confissão para o fim de obtenção do referido acordo é totalmente desconsiderado, de modo que não poderá ser utilizado em desfavor do acusado em eventual condenação caso venha a ser rescindido o pacto (HC nº 756.907/SP).

Bem por isso, se a confissão não possui valor jurídico probatória em caso de rescisão, e se esta ofende frontalmente o direito fundamental que proíbe a autoincriminação, fizemos uma opção por apontar previamente nossa posição institucional e recomendar a todos os promotores(as) de Justiça do Estado de Mato Grosso que dispensem a confissão como condição da proposta.

Por se tratar de uma recomendação, fica evidentemente preservada a independência funcional dos membros que podem adotar a nossa linha de entendimento e propor referido acordo mesmo sem a confissão, ou discordar desta recomendação e recursar a sua proposta.

Neste caso, de recusa do promotor de justiça, caberá ao Procurador-Geral de Justiça revisar os fundamentos da recusa (art. 28-A, §14, CPP), e sendo esta pautada exclusivamente na ausência de confissão, já se adianta, desde logo, que haverá determinação para o oferecimento do acordo, com a possibilidade de designação de substituto legal caso o promotor original da causa alegue ofensa à sua independência funcional.

Cabe, portanto, a todos os atores do sistema de justiça, inclusive aos membros do Ministério Público, enquanto intérpretes da Constituição, levar ao Poder Judiciário, seja através do controle de constitucionalidade concentrado (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, e ação de descumprimento de preceito fundamental), seja através do controle difuso ou concreto de constitucionalidade, impugnação às normas que contrastem com a norma constitucional.

No caso, a aplicação da recomendação resultará na deflagração do controle de constitucionalidade difuso ou para o caso concreto, quer no momento em que a autoridade judiciária promova a homologação da proposta de acordo de não persecução penal celebrado sem a  confissão, quer quando recuse a sua homologação, pois neste caso, será cabível recurso em sentido estrito ao E. Tribunal de Justiça, e quando do enfrentamento da tese, caso a referende, deverá remeter a questão à análise do órgão especial, em respeito à cláusula de reserva de plenário disposta no artigo 97, da Constituição Federal.

Apesar da polêmica existente, de se registrar, observado o absoluto respeito às opiniões em sentido diverso, que temos que as razões de convencimento para a sua emissão estão escoradas em argumentos jurídicos sólidos que amparam a argumentação da inconstitucionalidade da exigência da confissão como requisito da proposta, e também por uma gama de argumentos de ordem prática. Vejamos.

Primeiro, a ideia central de qualquer acordo é a de pôr fim ao conflito, com a pacificação da questão. Deste modo, o estigma de uma confissão que não tem serventia jurídica alguma, e que apenas torna menos atrativo o benefício do acordo de não persecução penal, abarrotando o Poder Judiciário com a instrução de ações (oitivas de vítimas e testemunhas), com consumo de recursos públicos e de tempo para a entrega da prestação jurisdicional, deve ser superado.

Note-se que em outros instrumentos de política criminal, como no caso da transação penal (art. 76, Lei 9.099/95) e da suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95), não se exigiu a confissão como condição para a proposta. Na seara cível, do mesmo modo o acordo de não persecução cível (ANPC), previsto no artigo 17-B, da Lei de Improbidade Administrativa, também não exige a confissão como condição para a proposta.

Segundo, não entendemos que a tese propugnada com a recomendação seja uma tese defensiva, mas sim uma tese de interesse de todos os atores do sistema de justiça que buscam um sistema funcional e eficiente. A celebração do acordo de não persecução penal pressupõe a proposta do promotor(a) de justiça, a aceitação do indiciado e de sua defesa, e a indispensável homologação judicial. Ademais, o resultado prático que se pode obter com a sua celebração é nitidamente equivalente ao que seria o resultado prático de uma sentença penal condenatória futura e incerta, pois admite-se, desde logo com sua celebração, a aplicação de medidas para a reparação do dano ou restituição da coisa à vítima; a renúncia voluntária a bens e direitos, apontados como instrumentos, produto ou proveito do crime; a prestação de serviços à comunidade e a entidades públicas; e o cumprimento de outras condições, como por exemplo o dever de exercer atividade lícita.

Terceiro ponto, a recomendação contribui com a tendência da ampliação da justiça negocial ou da ampliação do consensualismo no sistema de justiça. A participação do indiciado, e de sua defesa, na construção da penalidade a ser cumprida no caso concreto, tem revelado maiores chances de contribuir para a redução dos índices de reincidência, sendo mais perceptível para a sociedade de modo em geral e também para a vítima a resposta do estado ao caso concreto. O transcurso do tempo necessário para a instrução da grande maioria dos processos que admitem a celebração do ANPP, necessário para que todos os atos processuais sejam cumpridos, faz com que sanções decorrentes de condenações sejam aplicadas em um tempo apartado daquele da ocorrência do fato, o que por si só já torna menos eficiente a sanção penal em seu desiderato ressocializador e preventivo, e como já salientado, por não se tratar de crimes que podem, via de regra, dar ensejo à aplicação de penas privativas de liberdade, muito mais eficiente que as medidas não encarceradoras sejam aplicadas o mais próximo possível do fato.

Enfim, são apenas algumas observações que sustentam a recomendação expedida com o propósito de dar mais coerência e eficiência ao sistema de justiça criminal, sempre respeitada as opiniões em sentido diverso.

Deosdete Cruz Junior é Procurador-Geral de Justiça

Fonte: Ministério Público MT – MT

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