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Mato Grosso sai na frente em conciliações completas por dano ambiental

A proteção do meio ambiente vem se tornando uma das maiores preocupações dos brasileiros. Àqueles que praticam um dano ambiental, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, desde 1981, impõe três tipos de responsabilidade, administrativa, civil e penal.
 

Face à constante valorização de soluções conciliatórias nos últimos anos, com o implícito reconhecimento de que um sistema de Justiça baseado em quatro instâncias não funciona, tornou-se comum a celebração de acordos, via de regra em apenas uma das esferas de responsabilidade.

Ocorre que o fato de remanescer a responsabilidade nas outras duas, dificulta a adesão dos infratores. Por isso, tenho insistido na necessidade de que os acordos não sejam isolados apenas em uma área (p. ex., civil), tendo escrito em 2022 que é chegada a hora de reunirem-se em um só local todas autoridades, do Executivo, Judiciário e MP, buscando-se solução ampla e definitiva. É evidente que, com isto, a negociação com o infrator será facilitada, ganhando o meio ambiente.

E agora, com alegria, constato que em Mato Grosso tal ideia avança. Poucos sabem, mas foi neste estado que se implantou a primeira unidade especializada na proteção do meio ambiente do Brasil. Refiro-me ao Juizado Volante Ambiental, criado em 1997, com sede em Cuiabá, sendo seu titular o juiz José Zuquim Nogueira, hoje desembargador do Tribunal de Justiça.

Passadas décadas, o estado volta à cena, com outra iniciativa elogiável, qual seja, a criação de um mutirão de conciliação múltiplo, destinado a compor, em um só tempo, um dano ambiental nas três vias, ou seja, administrativa, civil e penal.

Conciliações na esfera administrativa são uma realidade já consolidada em Mato Grosso, como se pode verificar mediante uma simples consulta à plataforma mundial de computadores. [4] Mas, alcançar as outras formas de responsabilidade e com isto atalhar a composição amigável, deu-se somente agora.

A iniciativa foi fruto da aproximação e de tratativas prévias entre a Secretaria de Estado do Meio Ambiente, na pessoa da Secretária Maureen Lazzaretti, do Ministério Público de Mato Grosso, com a interlocução do Promotor de Justiça, Marcelo Caetano Vacchiano, Coordenador do Centro de Apoio à Execução Ambiental, e da Polícia Civil, através da ação da Delegada Alessandra Saturnino de Souza Cozzolino, integrante do Gaeco ambiental. Evidentemente, outras tantas pessoas e entidades deram colaboração importante.

Assim, de 25 a 29 de setembro deste ano, em Cuiabá, realizou-se o “Mutirão de Conciliação”. A equipe destacada para participar na busca de soluções atendeu 187 casos, muitos deles do interior do estado. São muitos? São poucos? A resposta é: nem muitos nem poucos, são os correspondentes à situação local. Isto significa que em estados populosos (v.g., SP) poderiam ser muito mais e em estados sem densidade demográfica (v.g., AC), muito menos.

O detalhe é que desta vez o mutirão não foi só de multas administrativas ambientais, mas também de indenizações pela responsabilidade civil e acordos pelas infrações penais. No âmbito administrativo, os pagamentos feitos pelos infratores valeram-se dos descontos previstos no Decreto nº 1436, de 18/07/2022. No âmbito civil, a meta principal foi a recuperação do bem degradado ou, na impossibilidade, medidas alternativas, inclusive indenização.

No âmbito criminal, que é a via mais complexa de chegar-se a uma conciliação, o Ministério Público apresentou proposta padronizada de Acordo de Não Persecução Penal ( ANPP), com a previsão de recuperação da área degradada e o compromisso do infrator em promover imediata regularização do Cadastro Ambiental Rural (CAR), sendo esta uma medida de relevância máxima para que se possa ter o controle da propriedade rural. Além de tais medidas, outras, como o pagamento de pena pecuniária, são previstas, sendo a verba destinada a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo Juízo da Execução, porém sempre relacionada com a temática ambiental.

No ANPP em matéria ambiental um detalhe deve ser registrado. Conforme artigo 28-A do Código de Processo Penal, é preciso que tenha o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal. A solução dada na proposta é que se dispense menção explícita de confissão no acordo, uma vez que a adesão é uma confissão formal da prática do ilícito penal. Trata-se de solução adequada e conforme à realidade, uma vez que eventual referência explícita dificultaria a conciliação.

Para evitar superposição de obrigações ao infrator, ou seja, o mesmo dever diante dos diferentes atores, foram cuidadosamente discutidos os limites de cada um e observados nos formulários e atas lavrados. Por exemplo, sendo vários os tipos de crimes ambientais e sujeitos a diferentes penas, as minutas tinham que ser diversas. Isto exigiu um trabalho enorme, porém no mutirão, quando o acordo ia ser concretizado, já havia uma peça adequada ao caso concreto. Com isto, o fluxo foi dinâmico.

No “Mutirão de Conciliação”, os atos que dependiam de homologação judicial foram formalizados, com posterior remessa dos arquivos eletrônicos ao juiz de Direito para homologação. Como as autuações eram de diferentes localidades, boa parte delas receberão homologação de diferentes magistrados.

Neste particular, um passo à frente seria a presença de um juiz no próprio mutirão. O juiz da Vara Especializada do Meio Ambiente da Comarca de Cuiabá (Vema), com designação especial do TJ-MT, seria perfeito. Sua presença facilitaria a desejável solução rápida e definitiva e em nada retiraria a independência do magistrado. Bem ao contrário, discordando de uma cláusula da avença, poderá ele, no ato, manifestar sua desaprovação e as partes acertarem solução, assim encerrando o impasse.

Mas alguém lembrará que, sendo as autuações de comarcas diferentes, como poderá um juiz decidir por todas? Isto não feriria o princípio do juiz natural?

A dúvida é razoável, mas não se sustenta. O princípio do juiz natural vem sendo flexibilizado em razão da complexidade dos problemas jurídicos da contemporaneidade. Em artigo publicado no ano de 2018, fiz menção a esta nova situação, citando precedentes do STF e do STJ:

Aos 15 de maio de 2008, o STF fixou o precedente. Tratava-se de uma resolução do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que fixou a competência da Vara dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional para ocorrências fora de Fortaleza, capital do Ceará. No Habeas Corpus 88.660, relatado pela ministra Cármen Lúcia, por 10 votos contra 1, a corte decidiu pela constitucionalidade da resolução atacada.

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou questão semelhante. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso criou a Vara Especializada Contra o Crime Organizado da Comarca de Cuiabá, cuja jurisdição se estende além dos limites da capital do estado. O juiz de Direito de Rondonópolis declinou da competência para a vara da capital. Discutiu-se a competência e, no Recurso Especial 1.611.615-MT, o STJ, em acórdão relatado pelo ministro Felix Fischer em 20 de março deste ano, reconheceu a competência do juízo da capital.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em junho do corrente ano, deflagrou processo para a criação e instalação de uma vara ambiental com competência estadualizada para processar e julgar todos os feitos que digam respeito ao IMA – Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina. Fácil é ver que se trata de uma tendência.

Em suma, inovar é sempre difícil, os obstáculos se sucedem e as soluções, na maioria das vezes, têm que ser criadas. Mas isto, ao contrário de desanimar, deve ser motivo de mais ânimo e coragem. Nada resiste à vontade de pessoas idealistas e motivadas. Por isso mesmo, as conciliações completas na área ambiental avançarão em Mato Grosso e nos outros estados, cada uma a seu tempo e modo. O meio ambiente agradece.

[1] BRASIL. Lei 6.938, de 1981, art. 14, § 1º. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938compilada.htm. Acesso em 12 out. 2023.
[2] FREITAS, Vladimir Passos de. Crimes ambientais: acordo e o processo penal, 10 abr. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-10/segunda-leitura-crimes-ambientaisacordos-processo-penal. Acesso em 2 out. 2023.
[3] FREITAS, Vladimir Passos de. O Poder Judiciário e o Direito Ambiental no Brasil. Justitia, São Paulo: MPSP, (65) 198, jan./jun 2008, p. 104.
[4] Disponível aqui. Acesso em 14 out. 2023.
[5] FREITAS, Vladimir Passos de. O princípio do juiz natural em um mundo em transformação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 23 set. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-set-23/segunda-leitura-principio-juiz-natural-mundo-transformacao. Acesso em 14 out. 2023..
[6] PODER JUDICIÁRIO DE SANTA CATARINA. Notícias. TJSC criará vara ambiental para julgar todos os processos relacionados ao IMA. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/tjsc-criara-vara-ambiental-para-julgar-todos-os-processos-relacionados-ao-ima. Acesso em 14 out. 2023.

Vladimir Passos de Freitas é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR, desembargador federal aposentado, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça, promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).
 

Fonte: Policia Civil MT – MT

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